sábado, 31 de março de 2012

Treino é treino e jogo é jogo: O Samba do Crioulo Doido


Hoje é dia 31 de março de 2012. Nesta mesma data, em 1964, eu morava em Governador Valadares e vivi, muito de perto as agruras daquela data. Pessoas morreram na minha rua, por causa da bendita revolução, que para muitos foi um golpe. Em 2005 escrevi a monografia abaixo para a minha especialização em Histórias e Culturas Políticas da UFMG. Apesar de não ter nada a ver com futebol, reflete um período de tempo que foi muito marcante na minha vida.


                                   E foi proclamada a escravidão![1]



   INTRODUÇÃO

            O Samba do Crioulo Doido
Quarteto em CY
Composição: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)
Foi em Diamantina
Onde
nasceu JK
Que a princesa Leopoldina
Arresolveu se casá
Mas Chica da Silva
Tinha outros pretendentes
E obrigou a princesa
A se casar com tiradentes
Lá iá lá iá lá ia
O bode que deu vou te contar
Lá iá lá iá lá iá
O bode que deu vou te contar
Joaquim José
Que também é
Da Silva Xavier
Queria ser dono do mundo
E se elegeu Pedro II
Das estradas de Minas
Seguiu pra São Paulo
E falou com Anchieta
O vigário dos índios
Aliou-se a Dom Pedro
E acabou com a falseta
Da união deles dois
Ficou resolvida a questão
E foi proclamada a escravidão
E foi proclamada a escravidão
Assim se conta essa história
Que é dos dois a maior glória
Da. Leopoldina virou trem
E D. Pedro é uma estação também
O, ô , ô, ô, ô, ô
O trem tá atrasado ou já passou[2]
         “Treino é treino, jogo é jogo”. Neném Prancha, grande filósofo do futebol brasileiro, eternizou sua filosofia em ditados como esse. Tal filosofia inspirou o título do presente trabalho, onde será abordada a crítica ferina aos costumes e à sociedade, feitas por Sérgio Porto, que escrevia sob o pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, mestre da sátira política, nos anos iniciais da ditadura militar.
         O período histórico que compreendeu a década de 1960, após o golpe militar de março de 1964, foi repleto de situações limite e comportamentos pouco ortodoxos por parte da sociedade brasileira, que tentava, à sua maneira adaptar-se aos novos tempos de repressão e censura. O mandonismo dos militares, as políticas denuncistas que visavam prejudicar carreiras de funcionários públicos e o medo do comunismo internacional, ditavam o imaginário popular do brasileiro.
         Nada disso escapou da percepção de Sérgio Porto. Através das crônicas que publicou no jornal Última Hora[3], também através das letras de canções, como no caso do “Samba do crioulo doido” e seus livros, como por exemplo o Febeapá: o Primeiro Festival de Besteira que assola o país (havendo ainda o segundo e o terceiro Febeapás), Garoto linha dura, entre outros, as nuances e os nonsenses de uma sociedade atônita com as transformações ocorridas foram hilariamente reportadas.
         O presente trabalho de conclusão da matéria Decantando a República: um inventário Histórico e Político da Canção Popular Brasileira tem por escopo retratar o período em questão sob a ótica de Sérgio Porto, principalmente através da letra do samba. A irreverência a serviço da crítica social. A tentativa do autor em burlar a censura com uma letra aparentemente ingênua em uma estória divertida. Tudo isso será visto rapidamente tendo em vista o pequeno texto redigido. Porém terá valia como descrição de uma época e da cultura política que fermentou durante quase todo o século XX no Brasil: as intervenções militares vistas como necessárias e bem vindas.
         A visão dos elementos mais significativos, que compunham a sociedade brasileira daquela época, por Sérgio Porto, perceptíveis na letra do samba será destacada. Os militares, a classe média, os funcionários públicos, os políticos e outros personagens estão presentes sub liminarmente na letra de Stanislaw. Quem sabe não estará nascendo aqui a Pesquisa do Historiador doido?

2 OS MILITARES
         Os militares, que saíram do evento de 31 de março como vencedores, trataram logo de demarcar seu território junto à sociedade preparada para os novos tempos de progresso e ordem. Eram os libertadores, guardiães das instituições democráticas e governantes “temporários” do Brasil. A classe média sentia-se recompensada e atendida no seu pleito de combate ao anticomunismo. O medo de perder seus bens para o estado tinha diminuído com a deposição de João Goulart, que pregava a reforma agrária e medidas inaceitáveis a quem possuía algum bem ou empregava alguém.
         Isto posto, a predominância do elemento militar à frente das instituições, empresas estatais e também de empresas privadas nas posições de comando não era discutida. O sonho dos pais da classe média era ter um filho nas academias militares: um bom salário, um futuro garantido e a possibilidade de influência para todos os parentes. A cultura do “você sabe com quem está falando?” imperava e resolvia várias pendências facilmente. Mas também trazia conflitos. Algumas vezes era necessário medir forças e patentes. Como no caso do cachorro do coronel que atarantava os condôminos do prédio onde morava, e que por coincidência o síndico era um major[4], hierarquicamente inferior à patente do dono do cachorro. Em tese, o síndico seria o responsável pela ordem no prédio e administrador dos interesses dos moradores, além de autoridade máxima. Mas, ao mesmo tempo, profissionalmente, o coronel era superior ao major. Tão inacreditável ficou a situação que virou crônica de Stanislaw:
“Por causa do que o cachorro fez, foi aberto um IPM de cachorro. King – este era o nome do cachorro corrupto – cumpriu todas as exigências de um IPM. Seu depoimento na auditoria foi muito legal. Ele declarou que au-au-au. (Febeapá 1, p.25)[5].
         No caso da canção tema deste trabalho, a intervenção dos militares e do governo, é claro, já pode ser notada no início da canção, quando o próprio Sérgio Porto lê o prefácio, no qual  explica que o crioulo acostumado a fazer sambas enredo sobre acontecimentos históricos brasileiros, recebe a incumbência de fazer um enredo sobre a conjuntura nacional[6] . É nítido que o autor quer mostrar a ingerência do governo militar também no espaço cultural. Tal atitude demonstra o interesse dos governantes em atuar no enredo como uma propaganda política enaltecendo os feitos da revolução. Deu no que deu. Os únicos versos que contêm uma asserção verdadeira são os dois primeiros que dizem que em Diamantina nasceu Juscelino Kubtscheck. Era tremenda a pressão do regime sobre as pessoas que, despreparadas tinham que se submeter à vontade dos governantes.
         A partir daí estava feita a crítica sobre novos costumes, como, por exemplo, o denuncismo generalizado que passou a fazer parte do dia a dia dos brasileiros. Principalmente no meio artístico e jornalístico onde os agentes incumbidos de recolher informações sobre ações subversivas mais produziam suspeitas sobre as pessoas vigiadas, do que produziam informações verdadeiras[7].  A obrigação do crioulo de fazer um samba diferente do que estava acostumado, produziu uma obra tão doida quanto o autor.
         Também o fato de envolver Tiradentes na letra do samba serve como uma crítica aos militares. É sabido que “Joaquim José, que também é, Da Silva Xavier” era um militar e patrono da Polícia Militar de Minas Gerais, berço do golpe. Sendo um ícone da república e militar, é colocado como uma pessoa gananciosa pois queria “ser dono do mundo”, casou-se com a princesa (que representaria a Pátria) contra a vontade dela e ainda se proclamou imperador.
         Como nascedouro do golpe de 1964, Minas Gerais é lembrada como gênese da confusão, pois “foi em Diamantina” e em outra parte da letra, Tiradentes “das estradas de Minas seguiu para São Paulo” para conversar com Anchieta, um dos fundadores da capital paulista.

3 OS MINISTROS, POLÍTICOS E FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS
         Stanislaw era um crítico mordaz do momento político vivido pelo Brasil após a revolução de 31 de março. E como não poderia deixar de ser havia a crítica sobre aqueles que conduziam a burocracia brasileira, usando como ferramenta de manutenção do poder e privilégios o puxa-saquismo. Em sua crônica “O Puxa-saquismo Desvairado” no primeiro Febeapá, conta a estória de um prefeito municipal cansado de mudar o nome da praça principal do lugarejo, devido às constantes mudanças de presidentes da República, que resolveu tal problema dando o nome definitivo à praça de “Praça Presidente Atual”[8].
         Em outra crônica, “O Candidato Ideal” no Febeapá 3, cita expressões populares para descrever as qualidades que o político deveria ter naquele momento em questão: “mão de gato, pé de boi, cabeça de bagre, estômago de avestruz e espírito de porco”[9]. Sorrateiro, pronto para qualquer trabalho mais simples, ruim de serviço, engole qualquer coisa e a digere bem e finalmente inventor de situações embaraçosas: eis o perfil do político brasileiro submetido aos poderes ditatoriais dos militares. É bom lembrar que a falta de discussão e o excesso de disciplina e hierarquia, são predicados de todo bom militar. O problema é que quiseram que toda a sociedade se adaptasse a tais qualidades.
         Na letra do samba encontramos Tiradentes se entrevistando com Anchieta, vigário dos índios. Não deixa de ser uma função pública, a de vigário, fruto da burocracia excessiva do país, que por sua vez, “aliou-se a Dom Pedro e acabou com a falseta”. Também o fato de “dar bode” pode ser explicado por um medo excessivo de errar e desagradar os comandantes governantes. Como constou acima, um estômago de avestruz ajuda a engolir as mais difíceis mazelas burocráticas.

4 O POVO BRASILEIRO
         As classes dominantes enxergavam apenas baderna, anarquia e principalmente subversão e o pior de todos, a comunização do país através dos movimentos legítimos das classes trabalhadoras[10].  O movimento operário, principalmente, era o alvo favorito dos militares, que viam na classe organizada e atuante um dos principais focos de resistência ao regime.
         No livro Garoto linha dura, na crônica “O operário e o Leão”, Stanislaw zomba descaradamente da restrição que as classes dominantes faziam da classe operária. Conta que um leão fugiu do circo e um rapaz, heroicamente, enfrentou a fera e a subjugou. Depois do ocorrido a imprensa corre para saudar o jovem herói e quer saber qual era a sua profissão. Ao saberem que o rapaz era um operário, a versão da façanha mudou de foco: “Leão indefeso e acuado morto por feroz agente comunista". Tal mudança de foco demonstra a crítica tanto ao ponto de vista dos militares como da postura adesista da grande imprensa. É sabido que grandes jornais como, por exemplo, O Globo e também redes de TV como a Rede Globo e posteriormente o SBT, faziam o jogo dos governantes visando favorecimentos.
         Já no Samba do Crioulo Doido a citação ao povo está justamente no prefácio, onde há uma imposição ao compositor, de origem bem humilde, de que faça o que não tem competência para fazer. O ritmo de Brasil Grande exigia uma formação superior ao que o povo realmente possuía.
         Também a resolução da questão colocada na letra da canção é extremamente desfavorável à população: “E foi proclamada a escravidão”! O que fora mote para desbancar a monarquia há um século antes pelos militares, volta como solução para as mazelas brasileiras. A escravidão do brasileiro submetido à vontade férrea dos militares golpistas era a verdadeira solução de todos os problemas nacionais. O povo é apenas um detalhe e uma questão de retórica no discurso revolucionário. Por ele foi feita a revolução e proclamada a escravidão. E como prêmio e reconhecimento, D. Leopoldina (que representa na música a Pátria) virou trem e Dom Pedro, que fora Tiradentes, vira estação. Estação que socorre e abriga a composição de vagões que é a nação brasileira. A estação é o local onde param os trens, de onde partem e onde chegam. Daí a pátria ser um trem com partida e destino certos, em horários também certos. Há um detalhe: o povo que está na estação constata que perdeu o trem nação: “o trem está atrasado ou já passou”...

5 CONCLUSÃO
         O Samba do Crioulo Doido retrata com muito humor e sarcasmo a conjuntura política da década de 1960 posterior ao golpe militar. Atingiu seus objetivos de crítica, principalmente para quem estava sintonizado com o que acontecia no país de imprensa cerceada pela censura. Interessante que muitas pessoas que são contemporâneas ao lançamento da canção entendem que trata-se de uma brincadeira de um autor de crônicas engraçadas que se meteu no mundo da música. Alguma coisa como uma galhofa sobre os sambistas das escolas de samba, que já àquela época, sofriam pressões para comporem seus sambas de acordo com a vontade dos maiorais do samba, do jogo do bicho e da política.
         A crítica é velada até certo ponto. Hoje é vista desnuda e atual. Também hoje possuímos nossos crioulos doidos que estão nos mais diferentes cargos e mais diferentes extratos sociais.
         Ao brincar com personagens tão importantes e marcantes na História brasileira e envolvê-los em tramas inverossímeis, Sérgio Porto mostrou a genialidade que o governo militar procurava provar que o povo brasileiro possuía. Convocações como “Ninguém segura a juventude do Brasil”[11] nas vozes de Os Incríveis, outras canções com Don e Ravel, Wilson Simonal, Antônio Carlos e Jocafi, Ivan Lins entre outros, além de programas globais como Amaral Neto: o repórter visavam mostrar ao brasileiro o seu potencial e o que, com o auxílio dos revolucionários de março de 64, estava sendo feito. A propaganda visava ao invés de ocultar o que ocorria nos “porões da ditadura” através da censura, mostrar ao povo que toda a sua potencialidade estava sendo explorada[12].
         Ao passo que muitos cantavam que “o Brasil merece o nosso amor”, Stanislaw cantava que estava “proclamada a escravidão”!  Quando cantavam que “este é um país que vai prá frente”, o crioulo cantava que nossa pátria havia virado um trem. E o pior: que o povo havia perdido o trem, pois, como conclui a letra do samba, “ O trem tá atrasado  ou já passou”...
         Sérgio Porto com suas crônicas irreverentes e seus livros, os Febeapás, lutou contra o regime então imposto ao país. Seu Crioulo Doido, ao lado da Graúna, Fradim, Bode Francisco Orelana e outros personagens de Henfil[13] , formaram uma certa reserva de resistência de quem não podia se manifestar livremente, mas podia protestar através da leitura de tal literatura subversiva (segundo os censores de plantão). Leitura essa que ficava mais emocionante à medida que a censura mandava recolher edições de jornais, como O Pasquim por exemplo. O fato de saber que tal publicação era considerada subversiva aumentava o interesse de possuí-la. Era uma corrida às bancas para chegar antes que a polícia também chegasse para recolhê-las.
         Assim sendo, resta-nos hoje reler tais publicações e ficarmos deliciados com tanta criatividade e ironia, que contrariava as pessoas que sentiam que tais discordâncias eram perniciosas para o Brasil. Gente que empunhou o terço como arma contra o comunismo em várias localidades do país em “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” [14].
         Em tempo, o prefácio:
         “Esta é a história de um compositor que, durante muitos anos obedeceu ao regulamento da Escola de Samba e só fez música sobre história do Brasil e tome tema de Inconfidência, Abolição, Proclamação, Chica da Silva, e o coitado tendo que aprender tudo isto. Até que um dia lhe deram um tema complicado: a atual conjuntura e aí o crioulo endoidou de vez.” [15]



[1] Quarteto em Cy. Samba do crioulo doido (com prefácio de Stanislaw Ponte Preta). Sérgio Porto [Compositor]. In: Série grandes nomes – Quarteto em Cy. São Paulo: Polygram, p1995. CD 2. Faixa 1.
[2] Quarteto em Cy. Samba do crioulo doido... Op. cit.
[3] MORAES, Dislane Zerbainatti. “E foi proclamada a escravidão!”: Stanilaw Ponte Preta e a representação satírica do golpe militar. Revista Brasileira de História., São Paulo: 2004, vol. 24, no. 47, p. 61-102. p.63.
[4] PRETA, Stanislaw Ponte. Febeapá: o Primeiro Festival de Besteira que Assola o País. (capa e ilustrações de Jaguar). Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966. p.25
[5] MORAES. Op. cit. p. 73.
[6] Quarteto em Cy. Op. Cit.
[7] NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). Revista Brasileira de História., São Paulo: 2004, vol. 24, no. 47, p.103-126. p.104.
[8] MORAES. Op. cit. p. 87.
[9] Ibidem, loc. cit..
[10] TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. Revista Brasileira de História., São Paulo: 2004, vol. 24, no. 47, p. 13-28. p.15.
[11] JARDIM, Eduardo. Que país é este? In: CAVALCANTE, Berenice, STARLING, Heloísa Maria Murgel, EISENBERG, José (Orgs.), Decantando a República, v2: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. Pp.48-49.
[12] FICO, Carlos. A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo & MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, SP: EDUSC, 2004. p.266.
[13] HENFIL. Fradim. Rio de Janeiro: Editora Codecri Ltda; Petrópolis: Vozes, 1973.

[14] MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil(1917-1964). São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2002. p.266.
[15] CAVALCANTE, Berenice. A república às avessas: boemia carioca e crítica libertina.  In: CAVALCANTE, Berenice, STARLING, Heloísa Maria Murgel, EISENBERG, José (Orgs.), Decantando a República, v2: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

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