Atendendo a sugestão do Ministro Joaquim Barbosa, para que leiamos o livro de Domingo Faustino Sarmiento - Facundo: Civilização e Barbárie, coloco no meu blog a monografia que fiz em 2005 para a conclusão de uma disciplina da Especialização em História e Culturas Políticas na UFMG.
1 INTRODUÇÃO
A ementa da
disciplina Pensamento social e político
hispânico-americano no século XIX começa explicando que tal disciplina
constará do “estudo de obras representativas das mais importantes correntes do
pensamento social e político hispano-americano no século XIX”. Isto posto, escolhemos como tema para nosso
trabalho de conclusão da disciplina a obra de Domingo Faustino Sarmiento, Facundo: civilização e barbárie,
tentando, superficialmente, entender o pensamento político de tão grande figura
da História argentina.
Em sala de aula
a obra de Sarmiento foi abordada, especificamente, em duas datas, 27 de
setembro e 04 de outubro. Tentaremos conciliar nossas anotações feitas em
classe, com a obra lida e bem apreciada, além de buscarmos validações de nossas
impressões em outros autores contemporâneos de Sarmiento ou posteriores a ele.
Tal obra de
Sarmiento não foi muito divulgada no Brasil, pois foi publicada primeiramente
em 1845 no Chile e somente em 1923 recebeu a primeira tradução para o
Português. As eventuais diferenças entre o Brasil e os outros países da América
Latina, tanto no que tange à forma de libertação do jugo colonial, quanto à
forma de governo escolhida, fizeram que obras de pensadores políticos de países
vizinhos demorassem a ser conhecidas pelos brasileiros, principalmente no
século XIX. Não deixa de ser importante relembrar que, enquanto o Brasil
escolheu o regime monárquico para conduzir seus destinos após a independência,
os outros países sul-americanos preferiram a república. Também a maneira
violenta, isto é, à custa de muita luta e sangue, como foram feitas as
independências de nossos vizinhos, destoaram do cenário brasileiro.
Para localizarmos
a produção tal obra de Sarmiento e entendermos as suas posições políticas,
devemos acompanhar a História da República Argentina na década de 1830. Em tal
época, a Federação Argentina era constituída de províncias, cujos mandatários
eram grandes estancieiros e a vontade política variava de acordo com os
interesses de tais donos de terra. A legalização da propriedade agrária e
regulamentação da mão de obra eram as grandes preocupações dos estancieiros e encontraram no governador
da Província de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas, o expoente máximo de tal
política. A Argentina enfrentava, àquela
época, lutas civis intensas e constantes em torno de dois grupos políticos, os
federalistas e os unitários. Entre os primeiros encontravam-se Rosas e Facundo
e entre os últimos Sarmiento.
A obra de
Sarmiento faz uma análise do contexto social e político da Argentina à época,
discorrendo sobre os tipos comuns encontrados no país, trazendo à baila a
dicotomia campo e cidade. O campo com a rusticidade, a pobreza, o desleixo e a
violência. A cidade, no caso Buenos Aires, primando com a cultura, a beleza, as
luzes e o sentimento de pertencimento a uma elite européia.
A figura do
homem aparece na obra de Sarmiento como um produto do meio geográfico onde
vive. Desse meio brotava o originalidade e especificidade do povo argentino
através da descrição de vários tipos, como o cantor, o gaúcho mau, o rastreador
e outros.
Dentre os tipos
criados pela natureza dos campos, surgiram os protagonistas, como Facundo
Quiroga, o caudilho de La Rioja, personagem principal da obra de Sarmiento.
2 BIOGRAFIA DE SARMIENTO
Domingo
Faustino Sarmiento nasceu em San Juan, província argentina de Cuyo em 1811,
juntamente como os movimentos de independência do antigo Vice-Reino de Rio da Prata.
Filho de uma modesta família, com pouca formação letrada, foi logo cedo enviado
por seu pai às Escuelas de la Pátria,
sendo alfabetizado muito cedo. Definia-se orgulhosamente como um autodidata,
embora esboçasse amargura e um sentimento de inferioridade por não ter recebido
uma educação formal. Sarmiento nunca apresentou modéstia a respeito de sua
história, tanto é que aos 39 anos já havia publicado sua autobiografia[2],
onde mesclava os fatos de sua vida com a vida da Argentina, legitimando assim,
o futuro líder político que viria ser.
As
oportunidades que teve de prosperar nos estudos foram sempre tolhidas por
eclosões de surtos de acontecimentos nacionais, como por exemplo, a entrada das
tropas de Facundo Quiroga em sua cidade, quando estava prestes a ir estudar em
Córdoba. As lutas sangrentas entre federalistas e unitários faziam com que
fosse necessário tomar partido de uma facção, sendo que Sarmiento tomou partido
dos unitários, uma vez que, como citado, fora prejudicado pelos federalistas.
Tal comprometimento com os unitários fez com que aos 20 se exilasse, com seu
pai, no Chile, retornando à sua casa em 1936, onde fundou a Sociedad Literária e o semanário da
cidade El Zonda.
Em 1840 é preso
e retorna ao Chile, exilado, após ser preso pelo envolvimento em uma
conspiração unitária. Passou a trabalhar no jornal de Valparaíso El Mercúrio. Politicamente alia-se ao
partido conservador chileno e é enviado duas vezes aos Estados Unidos pelo
governo. Já em Santiago funda o primeiro diário que se chamou El Progreso. É nesse jornal que publica
como folhetim, Facundo ou civilização e
barbárie. Era um livro que anunciava a futura atuação política de Sarmiento
em favor da civilização e do progresso. Era muito lido e querido pelos chilenos
que viviam uma fase de invasão do romantismo. Autores como Alberdi e Lopez,
além de Sarmiento eram muito lidos[3]
e comentados.
Após a queda de
Rosas em 1852, a carreira política de Sarmiento tornou-se brilhante. Foi
governador de San Juan, Ministro de Estado, Senador, embaixador e Presidente da
República entre 1868 e1874. Dedicou-se à causa da educação pública e durante
seu governo, as escolas foram disseminadas por todo o país. Promoveu a
“Campanha do Deserto” onde as populações indígenas foram deslocadas para o sul
do país, numa tentativa de isolar a “barbárie”. Em 1852 foi condecorado por D.
Pedro II em Petrópolis. Em 1881 é nomeado Inspetor Geral de Escolas levando à
Inspetoria o seu conhecimento sobre sistemas de ensino em escolas de todo o
mundo.
Falece em 11 de
setembro de 1888.
3 O LIVRO
Sarmiento
divide o seu livro em três partes:
A
primeira descreve o ambiente onde habita o gaúcho e como a natureza atua sobre
ele, moldando e curtindo seu caráter. As vastidões corrompendo o homem e
aflorando nele seus instintos mais selvagens. Dessa natureza brotam tipos
próprios dos argentinos, como o rastreador, o vaqueano, o cantor e o
gaúcho mau.
Interessante
como nas descrições há uma mistura muito forte do verdadeiro com a lenda.
Talvez, por isso, se discuta até hoje se o livro é um romance, ficção ou meio
biografia e meio história política. A estória do fugitivo condenado à morte que
se esmerou em despistar o rastreador experiente, “aproveitando todos os
acidentes do terreno para não deixar vestígios[4]”
e não conseguiu, é um bom exemplo. Mesmo com toda a astúcia, foi executado para
deleite do rastreador que o encontrou. Ou mesmo a estória de como conseguiu
encontrar o rastro do ladrão que lhe roubara os arreios após dois anos! Segundo
Sarmiento, havia um poder microscópico nas vistas do rastreador que lhe daria
poderes fantásticos, e os seus depoimentos dados em juízo, tinham o valor de
evidências.
Assim
como o rastreador há o vaqueano que é
um gaúcho grave e discreto, que conhece palmo uma grande parte da planície, das
matas e das montanhas. Consegue encontrar os caminhos na mais escura escuridão
simplesmente mastigando ervas e raízes do solo onde se encontra. Consegue
anunciar a proximidade do inimigo. Eis, pois o porquê de ser tão importante e
se postar sempre ao lado dos generais argentinos.
O
Gaúcho Mau, apesar do nome, “não é um bandido, não é um salteador; o ataque à
vida não entra em sua idéia,... rouba, é verdade, mas esta é a sua profissão,
seu tráfico, sua ciência[5].”
Conhece todos os cavalos que há na província! Mora nos Pampas, sua morada
encontra-se nas moitas e vive da caça. É um selvagem de cor branca.
E,
finalmente entre os tipos descritos por Sarmiento, há o cantor. Não tem residência fixa e faz o mesmo trabalho que o bardo,
ou trovador, fazia na Idade Média. Canta e exalta os feitos dos heróis dos
Pampas. Mistura os feitos de outros com seus próprios feitos.
Com
tais descrições Sarmiento caracteriza o morador da campanha e dá as
características sociais e morais dos caudilhos que dominam e infernizam as
planícies, pois, em última instância, são oriundos desses tipos originais, como
por exemplo, o General Rivera e Artigas que eram vaqueanos.
Muito
interessante é a analogia constante que Sarmiento faz entre o argentino,
habitante dos Pampas e o árabe habitante do deserto no oriente. Como compara os
dois tipos e acha muitas semelhanças entre eles. Os códigos de honra, a luta
contra a desolação e o deserto, o relacionamento com os animais e a obediência
aos poderosos são quase idênticos.
A
segunda parte do livro é pertinente à biografia de Juan Facundo Quiroga. Nasce
na região de San Juan e constrói fortuna nos lhanos de La Rioja. Luta nas
guerras de 1810. Possuía uma paixão feroz pelo jogo e várias atrocidades
cometeu por causa desse vício. Jogava compulsivamente noites a fio e não
admitia perder. Quando se tornou o poderoso e famoso caudilho argentino,
protegido pelo seu exército e sua fama, aí sim não perdeu mais. Quem ousasse
vencer, ou desse o azar de vencer, era logo punido com as mais horríveis das
mortes. Por haver perdido todo o salário de um ano, quando era jovem, degolou
um juiz que o havia parado pedindo documentos[6].
Alia-se
às montoneras e espalha o ódio e medo
por onde passa. É preso em San Luis e divide a cela com vários oficiais
espanhóis presos durante as lutas de libertação. Tais prisioneiros se sublevam
e na fuga libertam os outros presos, entre os quais está Quiroga. Facundo
aproveita a ocasião e mata quatorze espanhóis, evitando-lhes a fuga e
tornando-se herói argentino. Era um homem-fera. Matava “a pontapés,...
arrancava as orelhas de sua amante;... abriu a cabeça de seu filho Juan com uma
machadada porque não havia forma de fazê-lo calar; esbofeteava, em Tucuman uma
linda senhorita a quem não podia seduzir nem forçar”.[7]
Usava o terror para intimidar e conseguir a lealdade de seus comandados. Após
uma vitória, tendo que se retirar, executou oficiais de suas tropas evitando
assim a possibilidade de traição durante sua ausência.
Em
1820, fruto de sua fama contra os espanhóis, Facundo recebe o título de
comandante de campanha. Derrota Francisco Aldao
em Llanos e sua fama não pára de crescer. Assume o governo da província
e exige o pagamento de dízimos para repor custas de guerra. O gado não marcado
após certa idade passava a ser considerado do fisco. Facundo exige que passe a
ser marcado com sua marca. Possui La Rioja como árbitro e dono absoluto.
Em
1825, a República se prepara para a guerra contra o Brasil e Facundo recebe a
incumbência de derrotar o Coronel Lamadrid em Tucuman e obtém sucesso. É a primeira
vitória de Quiroga fora de seus domínios, o que lhe aumenta a experiência e
confiança.
Rosas
assume o governo da Província de Buenos Aires e torna-se líder de toda a
Argentina. Alberdi afirmou que “os presidentes são reis por cinco anos, em todo
o sentido da palavra, exceto no nome[8]”.
Rosas foi rei por mais de uma década. Obriga que todos usem faixas vermelhas
com inscrições contra os unitários. Impera o terror em toda a Argentina. Os
unitários estão derrotados e banidos da nação.
Quiroga
controla a Região dos Andes: Jujuy, Salta e Tucuman. Ferré controla Catamarca e
Corrientes. López domina La Rioja, Entre Rios, San Juan, Santa Fé, Mendoza e
Córdoba. San Luis e Buenos Aires estão sob o controle de Rosas.
Facundo
estabelece residência à essa época em Buenos Aires. Controla seus interesses de lá, mas incomoda
muitos caudilhos com seu poder. Em 1835 Rosas convida Facundo para ir a Córdoba
acertar divergências entre governadores que ameaçam ir à guerra. Parte de
Buenos Aires precedido de um mensageiro que irá anunciá-lo a seus inimigos.
Toda a cidade de Córdoba sabe dos detalhes da traição e que dali Facundo não
sairá vivo.
Santos
Pérez, um gaúcho mau, o mata em 18 de fevereiro de 1835 em Barranca-Yaco com um
tiro no olho.
Sarmiento
no livro dá a entender que Rosas foi o mentor do assassinato, sendo tal morte
um ato oficial do governo portenho, apesar de todas as honras fúnebres
prestadas pelo mandatário portenho.
Na
terceira parte é abordada a nação e a política. Sarmiento usa Facundo como
pretexto para atacar Rosas, seu verdadeiro e grande rival. Propõe a derrubada do caudilho e indica uma
alternativa de governo calcada na educação e extinção dos bárbaros que assomam
a Argentina. Seu projeto é o de um país unido e liberal. Grandes obras seriam
feitas no futuro governo: a volta dos correios, o incremento da indústria e do
comércio interior e exterior. Seria estabelecido o fim do isolamento argentino
com o resto do mundo ( a Argentina sofria um bloqueio naval da França e
Inglaterra).
A
idéia de Sarmiento era a de uma continuação do governo de Bernardino Rivadávia
(1826-1827) que fora encerrado pela barbárie federalista. Um estado de direito
que promoveria o desenvolvimento
econômico.
4 Conclusão
O presente
trabalho não visa ser um estudo profundo da situação política argentina no
século XIX, pois tal assunto merece uma atenção especial e também um mergulho
no pensamento de outros letrados, como Alberdi, Gutiérrez e Echeverría. Nossa
intenção é demonstrar através de uma obra, a complexidade e ao mesmo tempo a
clareza como os problemas políticos argentinos foram abordados por um dos seus
mais famosos pensadores.
Interessante
foi notar a importância que Sarmiento deu ao estudo da História e a relevância
da sua escrituração para a construção da nacionalidade. Poderíamos traçar um
paralelo com a criação do IHGB no Rio de Janeiro, que tinha como escopo o
registro e manutenção da História da Pátria que nascia. A geografia e a
História eram fundamentais para o conhecimento dos fundamentos da Pátria.
A obra de
Sarmiento, a partir da oposição entre civilização (unitários) e barbárie
(federalistas), consolidou o destino político do futuro presidente argentino
reconhecido em todo o mundo, inclusive no rival Brasil, anunciando sua cruzada
contra o analfabetismo e ignorância.
A influência de
Michelet, assim como a de Alexis de Tocqueville foram fundamentais no
pensamento de Sarmiento. Queria ter sido um discípulo desse último, divulgando,
através das teorias sociais, o mundo argentino para todas as nações, principalmente
as européias. Afinal, o mundo começava e terminava na Europa.
Da leitura de Facundo: civilização e barbárie tiramos
o pensamento de uma corrente de letrados argentinos que em muito influenciaram
na sedimentação da noção de nação argentina. Desses letrados extraímos o amor
às coisas do campo que valorizavam as luzes das cidades. Dentro de tal
pensamento era muito mais proveitoso a conciliação dos dois meios, o urbano e
rural. A tipicidade da vida nos pampas e a civilização e cosmopolitismo de Buenos
Aires, Córdoba e outras menores. Sobre tal visão, conseguimos entender os
fenômenos ocorridos na Argentina no século seguinte, com o advento dos governos
populistas, que muito apelaram para tais sentimentos presentes no universo
cultural portenhos.
A
persistência das idéias revolucionárias, segundo Beired[9],
na história da América Latina tem entre suas razões o fato de seus estados, à
exceção do Brasil, serem formações políticas oriundas de revoluções que
repercutiram em tais sociedades no século XIX.
Referências
Fontes
bibliográficas
ALBERDI, Juan Bautista. Del
Gobierno em Sud-América. Buenos Aires: Editorial Luz del Dia, 1954.
Beired, José Luis Bendicho. Revolução e Cultura Política na
América Latina. In: DAYRELL, Eliane Garcindo & IOKOI, Zilda Márcia Gricoli
(orgs.). América Latina Contemporânea:
desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo:
EDUSP, 1996.
SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo civilização e barbárie. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
_________________________ . Recuerdos de la Província. Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1979.
ZANETTI, Susana. Testemunho de uma leitora no início da
República Chilena. In: ABREU, Márcia, SCHAPOCHNIK, Nelson (Orgs.). Cultura Letrada no Brasil: objetos e
práticas. Campinas: Mercado das Letras, Associação de Leitura do Brasil
(ALB); São Paulo: Fapesp; 2005.
[1]
SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo
civilização e barbárie. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. p. 85.
[2]
SARMIENTO, Domingo Faustino. Recuerdos de
la Província. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1979.
[3]
ZANETTI, Susana. Testemunho de uma leitora no início da República Chilena. In:
ABREU, Márcia, SCHAPOCHNIK, Nelson (Orgs.). Cultura
Letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas: Mercado das Letras,
Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo: Fapesp; 2005.
[4]
SARMIENTO, Facundo. Op. cit. p.92.
[5]
SARMIENTO, op. cit. p.96.
[6]
Ibidem, p. 134.
[7]
Idem, ibidem, p.139.
[9]
Beired, José Luis Bendicho. Revolução e Cultura Política na América Latina. In:
DAYRELL, Eliane Garcindo & IOKOI, Zilda Márcia Gricoli (orgs.). América Latina Contemporânea: desafios e
perspectivas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1996.
p.438.
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